Se o desenvolvimento de máxima potência neuromuscular é descrita como a relação ótima entre o trabalho realizado pelas fibras musculares e o tempo em que essas fibras conseguem contrair [1], nada mais lógico do que buscar a máxima eficiência na contração dessas fibras, correto? Nossa fisiologia músculo-esquelética é composta por fibras musculares de três tipos distintos: as oxidativas lentas (Tipo I), as oxidativas rápidas (Tipo IIa) e as oxidativas glicolíticas (tipo IIx) [2].
Vamos iniciar hoje, uma série que discute exatamente como cadência e potência estão relacionadas, para que possamos treinar bem e entender como essas fibras podem ser recrutadas, treinadas e ajudar você a conseguir melhores resultados no pedal com os amigos aos finais de semana. Então, que tipo de fibras você irá treinar hoje?
Quando o Tio Lance mudou a filosofia do ciclismo
Yeahhh! Vamos iniciar nosso post falando da época mais emocionante e macabra do ciclismo mundial: os anos 1990.
Vou trazer à tona alguns fatos que mudaram a forma de enxergarmos os caras duelando morro acima na etapa rainha de um Grand Tour. Para isso, eu vou precisar que se lembre das suas aulinhas de física lá do ensino médio (ou como se chamava a escola no seu tempo). Só há duas formas de manter a potência em cima de uma bicicleta: fazendo força (torque) ou girando mais (cadência). Sua cadência é medida em rpm (revoluções por minuto), força é medida em Newtons (N). Torque (N.m) é o produto da força (N) vezes a distância de aplicação da força ao apoio (m). Para o pedivela, o eixo central é o apoio e o ponto de aplicação é o pedal. O resultado da combinação de torque e da cadência é potência (W).
Antes da década de 1990, todos os GCs das grandes voltas eram notoriamente escaladores que subiam os Cols na força do ódio, moendo os joelhos. Até que Michele Ferrari foi finalmente apresentado à Eritropoetina (EPO). Com a sua genialidade do mal e a conivência da UCI, Dr. Ferrari e Lance Armstrong alinharam para o Tour de France em 1999 com uma arma ainda mais secreta que seringas de hormônios e bolsas de sangue refrigeradas. Eles entendiam muito bem como potência e cadência eram minunciosamente ajustadas para a máxima eficiência fisiológica. Lance iria manter a potência requerida para as grandes subidas do Tour, girando infinitamente mais rápido que a concorrência, reduzindo os danos musculares, minimizando a produção de ácido lático e acelerando a recuperação entre etapas, através de um potente preparo do sistema cardio-vascular. Para ter uma idéia do que isso representou na época, assista ao vídeo abaixo (Vídeo 1). Por isso havia a necessidade desesperada de mais hematócritos durante a fase de preparação e ao longo das desgastantes três semanas de competição. Seis a dez por cento de acréscimo na capacidade de oxigenação dos tecidos no nível desses caras representa anos-luz de distância na classificação geral.
Video 1 – Escalada Sestriere, Tour de France 1999 [7].
Aquilo causou uma revolução na forma que todo mundo treinava. Anos mais tarde, ainda sob o impacto das revelações de Armstrong e da investigação total da USADA (Agência anti-doping dos Estados Unidos), Froome assombrou o mundo com sua magreza e levantou sérios questionamentos se realmente estava limpo na escalada do Ventoux em 2013 (Vídeo 2) [8]. Outros tipos de doping pairavam no ar, muito além do EPO [9].
Video 2 – Escalada Ventoux, Tour de France 2013 [8].
Simultaneamente aos resultados de pesquisas que iam jogando luz sobre como diferentes técnicas de treinamento podem otimizar a produção de potência, os potenciômetros começavam a se tornar mais acessíveis ao público comum. A economia de escala conseguiu reduzir drasticamente seu preço, fornecendo diferentes tecnologias e permitindo que já na metade da década de 2010 se pudesse adquirir um medidor de potência com precisão confiável, por menos de mil dólares. Hoje, a popularização da banda larga fez com que os rolos de treinamento (antes a tortura de qualquer ciclista), trouxesse esse tipo de equipamento incorporado, transformando-o em um verdadeiro vídeo-game funcional. Plataformas de treinamento on-line conseguem captar uma quantidade inimaginável de meta-dados, divididos entre fabricantes, treinadores e pesquisadores, numa rede de informações interligada capaz de deixar qualquer “Edward Snowden” com inveja. E informação é a arma do conhecimento há algum tempo…
A geração de potência à partir do treinamento eficaz
Com essa quantidade de dados disponível, é possível investigar meta-dados que revelam como diferentes biotipos e propostas de condicionamentos (profissional, entusiasta, amador, recreativo) reagem aos diferentes estímulos de treinamento. Conceitos os quais eram verdadeiros dogmas, caíram por terra e estão sendo revistos em uma velocidade impressionante, difícil mesmo de acompanhar. E como todo mal sempre nos guiará para um bem maior, o verdadeiro legado de Lance Armstrong e Michele Ferrari foi nos mostrar que, apesar de toda a desonestidade e fraude tecnológica imposta ao mundo do ciclismo no início do século, novas propostas de treinamento em intervalos de alta intensidade são realmente eficazes e mensuráveis.
E se eu perguntar agora: Como você prefere gerar potência? Certamente teremos um quase empate entre “girando muito” e “fazendo força”. Algumas pessoas preferem escalar usando a coroa menor (34 ou 36 dentes, atualmente), enquanto outras preferem fazer isso em pé, com muita força (53×12!!!). Desde 1938 há estudos que relacionam a potência muscular com a velocidade de contração [1]. É fisiologicamente impossível ter uma contração muscular concêntrica à velocidade máxima com potência máxima. O ponto de equilíbrio fica alí, em torno de 40% da máxima velocidade de contração.
Os músculos que te fazem ser um ciclista (de responsa).
Acredite em mim, tudo o que você precisa saber para entender porque deve treinar periodizado, é como a fisiologia humana necessita de impulsos diferentes para fortalecer a sua estrutura. As fases de contração muscular são classificadas de acordo com o movimento de força do músculo envolvido. Quando as fibras musculares executam o movimento de força na sua extensão (alongamento), chamamos de movimento de fase de ação excêntrica. Quando o oposto ocorre, ou seja, as fibras musculares executam o movimento de força na sua contração (encurtamento), chamamos de movimento de fase de ação concêntrica. E quando não há movimento ou alteração significativa do ângulo das articulações, mas há produção de força, temos uma contração isométrica [3, 4].
Para a pedalada, dos seis movimentos possíveis, precisamos primordialmente apenas da flexão/extensão de joelho para imprimir potência [5]. Não é necessário ficar decorando anatomia ou achar que precisa ser da área de saúde entender os dados que o o seu Garmin retorna para você. Por isso, há na internet, uma infinidade de gráficos que mostram os grupos que são recrutados em casa fase (ângulo) do pedivela [6]. A Figura 1 mostra que temos os músculos extensores de quadril (1), o grupo muscular extensor de joelho (2), os músculos estabilizadores da dorsiflexão e flexão plantar (3 e 4), os músculos flexores do joelho (5) e finalmente o grupo flexor de quadril (6) [5, 6]. Temos então, músculos que devem ter ação excêntrica e concêntrica, à máxima eficiência.
Romeu e Julieta, ou melhor: Ponte de actina-miosina (um pouco de química).
As fibras musculares vivem um relacionamento de amor conturbado, chamado de ponte cruzada entre as proteínas actina e miosina. O conjunto muscular é composto por tecido muscular, tecido conectivo, vasos sanguíneos e fibras nervosas. Cada músculos vai precisar de muita energia para contrair e por isso tem uma artéria e veia dedicada para executar a sua função (perceba que não estou falando de capilares, ainda). Além de um um nervo específico que faz a ligação neural para a sua ativação (neuromuscular). São estruturas complexas, cada uma com sua usina de energia, chamada de mitocôndria.
Nesse processo, proteínas obedecem a duas regras simples, em que (regra 1) elas mudam de forma quando outra estrutura bioquímica se une à elas e (regra 2) que essa mudança de forma permite com que elas se unam ou se separem de outras estruturas. Os sarcômeros são mostrados de forma simplificada na Figura 2a. O filamento mais espesso é composto pela proteína miosina. As fibras musculares são estriadas (sarcômeros), de ação totalmente voluntárias essas estrias recebem o nome de linha z. Cada sarcômero é separado pela zona de ativação muscular (banda A), conforme mostra a Figura 2a. Quando o músculo contrai (Figura 2b), aproxima as linhas z de sua estrutura.
No músculo em estado de relaxamento, não há contato entre os filamentos espessos de miosina e os finos de actina, pois duas outras proteínas (tropomiosina e troponina) bloqueiam os filamentos finos de miosina. Os íons de cálcio e o trifosfato de adenosina (ATP), a qual contém a energia química essencial para os sistemas biológicos, que é convertida pelo processo de hidrólise (quebra da molécula pela adição de água). Os íons de cálcio são liberados de outros tecidos e estruturas (retículo sarcoplasmático e sistemas de tubos transversais, mas não vamos entrar muito nos detalhes) através da conexão neural local da fibra muscular e se ligam quimicamente à troponina. A troponina ligada aos íons de cálcio (regra 1), conseguem remover a barreira química composta pela tropomiosina. Isso deixa os filamentos de miosina prontos para se ligar quimicamente aos de actina (localmente). Os filamentos d miosina que irão conseguir formar a ponte cruzada são aquelas que conseguiram capturar uma molécula de ATP que estavam presente no tecido juntamente com os íons de cálcio. Ao capturar o ATP, a miosina irá quebrar a molécula por hidrólise, capturando sua energia e transformando ATP em difosfato de adenosina (ADP e um íon poliatômico de fosfato (PO4).
Esse processo faz com que a miosina se ligue temporariamente à actina, contraindo a fibra muscular. Com isso a molécula de ADP e PO4 quebram sua ligação com a miosina (regra 2), até que outra molécula de ATP se ligue ao filamento de miosina que está conectado com a actina, desconectando os dois filamentos. Quando essa quebra acontece, outro processo de hidrólise ocorre, armando aquele filamento para uma nova ponte. Como os íons de cálcio precisam ser transportados de volta para os retículos sarcoplasmáticos, eles se desligam das moléculas de troponina e a tropomiosina fecha a ponte cruzada novamente. Só que isso ocorre em um ciclo contínuo. E daí surge a fadiga muscular pela saturação dessa ponte por causa dos íons de H+, que são as sobras do processo metabólico.
Figura 2 – Ponte Cruzada de Actina e Miosina, adaptada por [10] de [11].
Reflexões de saída
Agora que você sabe como a coisa funciona, temos que trazer um pouco de reflexão a todo esse novo conhecimento adquirido. A função principal das usinas de energia (mitocôndrias) é produzir ATP. Quanto maior for a concentração de mitocôndrias no tecido muscular, o que chamamos de densidade mitocondrial, mais energia (ATP) o músculo terá disponível para usar. [12] [13]
Então, na semana que vem, vamos focar na parte do treinamento que irá lhe proporcionar maior densidade mitocondrial, maior adaptação cardiologista-vascular à contração rápida com a conversão maior de energia.
Um grande abraço
Referências Bibliográficas (cheio de interferências etílicas…)
[1] Cormie, P., McGuigan, M.R. and Newton, R.U., 2011. Developing maximal neuromuscular power. Sports medicine, 41(1), pp.17-38.
[2] Buchheit, M. and Laursen, P.B., 2013. High-intensity interval training, solutions to the programming puzzle. Sports medicine, 43(10), pp.927-954.
[3] Enoka, Roger M. “Muscle strength and its development.” Sports medicine 6, no. 3 (1988): 146-168.
[4] Behm, D.G. and St-Pierre, D.M.M., 1997. Effects of fatigue duration and muscle type on voluntary and evoked contractile properties. Journal of Applied Physiology, 82(5), pp.1654-1661.
[5] Sovndal, S., 2019. Cycling anatomy. Anatomy.
[6] Muller, R., 2017. Pedal Stroke Explained. [online] Coachrobmuller.blogspot.com. Available at: http://coachrobmuller.blogspot.com/2017/12/pedal-stroke-explained.html [Accessed 18 Nov. 2019].
[7] YouTube, 2016. YouTube. [online] Available at: https://youtu.be/B6hM9ejMiAk [Accessed 19 Nov. 2019].
[8] YouTube, 2013. YouTube. [online] Available at: https://youtu.be/Qy6SCE9sMw8 [Accessed 19 Nov. 2019].
[9] 53×12.com., 2013. TdF 2013 – Part III |53×12. [online] Available at: https://www.53×12.com/tdf-2013—part-iii [Accessed 19 Nov. 2019].
[10] Edisciplinas.usp.br. (2019). Texto 6 – O Citoesqueleto: Microtúbulos, Filamentos de Actina e Filamentos Intermediários: 9. Funções dos filamentos de actina. [online] Available at: https://edisciplinas.usp.br/mod/book/view.php?id=2433765&chapterid=19669 [Accessed 22 Nov. 2019].
[11] Karp, G., 1996. Cellular and molecular biology. John Willey anbd Sons Inc., New York, Chichester, Brisbanc, Toronto, Singapore.
[12] Robergs, R.A., Ghiasvand, F. and Parker, D., 2004. Biochemistry of exercise-induced metabolic acidosis. American Journal of Physiology-Regulatory, Integrative and Comparative Physiology, 287(3), pp.R502-R516.
Sobre o autor
Pedro Anselmo Filho é engenheiro mecânico e professor, com doutorado em combustão pela Universidade de Cambridge e mestrado em energia aplicada pela Universidade de Cranfield. Leciona para os cursos de Engenharia Mecânica e Automação e Controle da Universidade de Pernambuco (UPE) e nos cursos avançados da Escola Americana do Recife. Pedala sem rodinhas desde os 4 anos e ciclista entusiasta que gosta muito de estudar sobre potência. Seu email para contato é pedro.anselmo.filho@gmail.com e clique aqui para ter acesso ao seu Strava.
Bom dia. O maior problema no ciclismo são as “verdades” transmitidas, muitas rapidamente podem ser desmistificadas com 20 minutos de boa conversa ou leitura de artigo, mas os ciclistas pouco se interessam em ler, escutar o que realmente importa, pra isso tem que haver mudança, deixar o velho e absorver a “novidade”, pior ainda, admitir que estava equivocado anos. A cadência alta de Lance Armstrong amplamente discutida tem fatores fisiológicos e do treinamento, Dr. Ferrari. Ele é estudioso(embora tenha ideias controversas), treinou inúmeros ciclistas das mais variadas qualidades, tem experiência e dados científicos, facilmente detectou que o Lance poderia ser mais econômico numa cadência acima de 90 rpm, é uma lei?! Não. Ciclistas que não tem predominância do sistema oxidativo vão sofrer até que se adaptem ao giro alto, mas vão melhorar consideravelmente sua condição de reserva energética imprescindível pro sprint, se tornarão mais econômicos. Problema e solução = Direção do Treinamento. De nada adianta treinar errado, e é só o que vemos, ciclistas esmagando pedal com quilometragens enormes que no fina só contribuem pra desgaste motor e fisiológico também, mais tempo pra recuperar, mais calorias pra repor o gasto, menos intensidade pois ela é inversamente proporcional ao tempo. Treinar sem referências – FC, cadência e medidor de potência é desperdiçar tempo e querer ter resultados baseados na sensação e achismo, muito complicado ter a percepção real, mas entendo pq são materiais de valores altos que impedem a aquisição, mas infelizmente no ciclismo atual é quase impossível não se falar em watts, até pra “amadores interessados”. O ciclista muitas vezes quer algo que ão compete a ele, suas características fogem ao desejo, insiste naquilo e fracassará até compreender que o seu treino tá errado e embora vá em pelotão, provas, etc seus resultados jamais irão se alterar caso permaneça realizando o mesmo sistema de treinamento, pa que ocorra uma melhora tem que haver testes, um olho clínico e re-direcionamento. Em todos os níveis do ciclismo a única coisa comum é o PESO, ciclista eficiente é aquele com peso em dia. Você pode ter potência mas se tem muito o que carregar sua energia será desperdiçada.