Alguma vez você estava treinando com seus parças, se sentindo o fortão e quando começou a subir de olho na sua potência, sofreu igual à um condenado quando tentava responder aos ataques na subida? Provavelmente deve ter pensado: “Ué, por que eu arreguei se eu estava dentro da minha zona de potência?”. Se isso já lhe ocorreu, este artigo é pra você.
Vamos ser práticos:
Suponhamos que um “amigo meu”, na faixa dos seus quarenta e tantos, depois de um tempo desiludido com o mundo, resolveu voltar um pouco mais seriamente aos treinos na bicicleta. Depois de alguns meses sofrendo com a barriga de chopp, a rotina exaustiva de trabalho e todos os empecilhos da esposa para que ele não retomasse a rotina dos longões com seus mais chegados aos sábados pela manhã, meu “amigo” conseguiu melhorar um pouco seu FTP para a casa dos modestos 200W. Bom, não é? Excelente. Só que veio um longão e ele sobrou na subida do quarto morro. Nada demais, apenas olhava para o Garmin e não acreditava o porquê não conseguia subir à 220W por 90 segundos. Afinal, havia aprendido que todos nós temos uma reserva de potência, que treinamentos intervalados à 300-320 W por 90 segundos são fundamentais para o seu condicionamento mental e físico, blá-blá-blá, mi-mi-mi, etc.
Mas e o que vem depois do FTP? O que acontece quando você passa da linha marcada do FTP e começa a entrar no vermelho? É aí que entra o tal do W′ (lê-se “double-u prime”) — sua reserva anaeróbica, ou, numa analogia mais prática, o “tanque extra” de energia que você pode gastar acima do FTP antes de quebrar.
Só que não basta saber o tamanho do tanque. O mais interessante é acompanhar como ele se esvazia e se recarrega durante o esforço. E isso é justamente o que o W′bal faz.
O que é o W′bal?
O W′bal é o “W′ balance”, ou seja, o quanto do seu tanque anaeróbico ainda está disponível em tempo real. Ele leva em conta:
-
O seu FTP;
-
O valor do seu W′ total (geralmente entre 15–25 kJ para atletas amadores);
-
E o histórico de esforço recente.
Quando você pedala acima do FTP, vai drenando esse tanque. Quando volta abaixo do FTP, ele começa a recarregar. Simples? Mais ou menos…
Como calcular o W′bal?
A fórmula original é mais chata que subida com vento contra. Ela vem de uma equação exponencial desenvolvida por Skiba, baseada na dinâmica de recuperação. Mas calma, você não precisa ser doutor em fisiologia pra brincar com isso. Basta entender os conceitos:
1. Estime seu W’:
Se você conhece seu CP (Critical Power), já tem uma base. Mas se só tem o FTP, uma estimativa prática é:
W’ (em kilojoules) ≈ (Potência média acima do FTP em um esforço de 3 a 5 minutos) × (Duração em segundos) ÷ 1000
Exemplo: você segura 400 W por 4 minutos, com FTP de 300 W:
→ Excesso = 100 W × 240 s = 24,000 joules = 24 kJ
Pronto, esse é seu W’ estimado.
2. Use ferramentas que calculam o W′bal automaticamente:
Garmin (Edge 1040, por exemplo), Golden Cheetah, WKO5, e TrainingPeaks já integram isso. Você só precisa inserir o FTP e o W′, e os gráficos aparecem magicamente.
3. Interprete o gráfico com sabedoria:
-
Quando o W’bal chega perto de zero: cuidado, você está no limite anaeróbico.
-
Quando ele está subindo: bom momento pra recuperar.
-
Quando ele está cheio: manda ver nos ataques!
Estudo de Caso
Vamos voltar ao meu amigo:
FTP de 200W. Pelas sugestões, o W’bal dele pode ter as seguintes curvas, como mostrada na Figura 1.
Eu sugeri ao meu amigo fazer um treino do antigo Sufferfest, chamado “Downward Spiral”. O treino é um verdadeiro inferno na Terra, com intervalos em 120% do FTP e bursts em modo anaeróbico. O “spiral”, vem do fato que cada intervalo é menor que o anterior, porém com recuperação menor também. È um verdadeiro teste de condicionamento HIIT. De olho na curva de potência crítica atual dele (Figura 2), nós podemos ver os seguintes pontos: aguenta 300W por até 90 segundos (OK), consegue manter uma potência entre 300W e 250W por mais 2 minutos e meio. Em cinco minutos, sua potência é quase igual ao seu FTP (60 min)!
São números que dá para se conviver. O importante agora é saber quanto tempo se recupera o tanque. Não vou inundar esse post de números, então basta apenas saber que esse tempo é “treinável”. No caso estudado, são precisos 9 min abaixo do FTP (< 200W) para uma recuperação parcial relevante do W’bal (Figura 3). E isso nem sempre acontece.
Figura 3 – Tempo de recuperação do W’bal para o “Meu Amigo”.Quando os Intervalos Cobram seu Preço
O treino simula a vida real, então olhando os números do treino do Sufferfest (Figura 4), vemos que os intervalos foram baixando gradativamente a reserva de potência, sem deixar que a recuperação total ocorresse. Após o segundo intervalo, já sabíamos que não iria chegar ao final do treino. Era apenas uma questão de treinar a mente para suportaar o sofrimento.
O gráfico mostra um padrão típico de treino intervalado bem executado. As zonas sombreadas em vermelho indicam quedas rápidas da reserva anaeróbica, ou seja, esforços acima do FTP. Essas quedas estão bem distribuídas ao longo da sessão, sugerindo que os ataques foram estrategicamente aplicados, com intensidade suficiente para provocar depleção significativa do W’bal sem zerá-la completamente. A questão agora era ficar de olho no comportamento da FC. Se não subisse para níveis de Z5, o melhor era parar, pois o treinamento à partir desse momento seria inócuo.
As zonas verdes, por outro lado, indicam recuperação eficiente da reserva, o que só ocorre quando a potência permanece abaixo do FTP por tempo suficiente. Essa recuperação consistente indica que o treino planejou e gerenciou bem o pacing durante os períodos de baixa intensidade, não permitindo regeneração total do W′ entre os blocos. Isso é um excelente sinal de um treinamento bem feito para condicionamento aeróbico e controle do esforço.
Essa é a beleza do ciclismo! E a genialidade do treinamento por potência.
A frequência cardíaca de “meu amigo” está bem controlada, apresentando um lag típico. No gráfico mostrado na Figura 5, observa-se o comportamento fisiológico esperado: a frequência cardíaca responde aos ataques com um leve atraso em relação à queda do W′bal. Isso é natural, já que o sistema cardiovascular leva alguns segundos para se ajustar ao novo nível de demanda metabólica. A recuperação da FC após os esforços é visivelmente mais lenta do que a recuperação do W′bal, o que é típico de treinos intensos e uma indicação válida de que o sistema cardiovascular está sendo desafiado adequadamente.
Apesar dos ataques intensos, a frequência cardíaca não atinge valores extremos — o que pode indicar uma de duas coisas: ou ele estava dentro de um bom controle de carga (sem ultrapassar o limite cardiovascular), ou já havia um certo nível de fadiga acumulada, que limitou a FC máxima. De todo modo, a resposta cardiovascular geral está bem sincronizada com os esforços, refletindo um equilíbrio positivo entre demanda anaeróbica e recuperação aeróbica.
Gostou do que conversamos aqui? Comenta aí em baixo. No próximo post, trarei novidades.
Sobre o autor