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Discutindo Potência – Parte I: A Potência

Quem já caminhou pelo fórum do Pelote.com.br sobre potência, lê constantemente que mencionamos PM pra cá, PM pra lá. A gente não está se referindo ao valoroso(a) Policial Militar, mas sim ao Medidor de Potência (ou em inglês – Power Meter). Esse tipo de equipamento já custou o valor de uma casa inteira, mas se popularizou a tal ponto em que hoje em dia, algorítmos conseguem calcular com uma certa precisão, os valores médios do seu pedalzinho domingueiro. Hoje, vamos começar a conversa do início mesmo.


O que é potência?

Há muita coisa a aprender quando alguém se interessa por medição de potência, mas eu gostaria de iniciar o papo de hoje com uma afirmação que os mais antigos vão confirmar categoricamente: nunca deixe que nenhum recurso tecnológico torne-se a razão principal para você subir numa bicicleta. Nada pode substituir o seu prazer de andar com o vento no rosto e liberar endorfina, sentindo o gosto de liberdade que somente uma bicicleta pode lhe proporcionar.

Fisicamente, potência é o resultado da razão entre a quantidade de trabalho [medido em Joules (J)] pelo tempo que é aplicado [medido em segundos (s)]. Se considerarmos o trabalho como a o resultado da força aplicada ao corpo [medida em Newtons (N)] multiplicada pelo deslocamento [medido em metros (m)], traduz dois conceitos bem simples quando pensamos no ato de pedalar – torque vs. cadência.

Torque é o que chamamos em física de um binário. Precisa de um ponto de apoio para existir. Já dizia Arquimedes há quase 2300 anos atrás: “me uma alavanca e um ponto de apoio e levantarei o mundo”. No pedivela, o ponto de apoio é o movimento central, a alavanca é o braço do pedivela. O comprimento mais usual é 172,5 mm, embora haja alguns modelos comerciais com até 177,5 mm. Fazendo um exercício rápido aqui, se o ciclista pesa 70 kg e seu pedivela tem o braço de 172,5 mm, o torque instantâneo quando todo o seu peso no momento em que o braço está à 90º (posição de três horas), seria de aproximadamente 120 [N.m]. Se o mesmo ciclista conseguiu manter esse valor de torque, usando ambas as pernas por 2/3 de segundo (aproximadamente o tempo necessário para uma revolução completa em cadência treinada) ao longo de toda a trajetória circunferencial do pedivela, sua potência instantânea terá sido de aproximadamente 180 [W]. Deu para perceber que colocar potência num dispositivo depende da força no pedal e da cadência que você consegue sustentar.

 

Valores Instantâneos, Média e Variância

Imagine que você vai pedalar e seu Strava retorna a seguinte análise do seu treino, como mostrado na Figura 1. Nesse meu treino, eu marquei a barra aos 23’56”, que representava uma distância de 13.1 km, num declive de 1.8% e com todos os sensores marcando velocidade (50 km/h), potência (106 watts), frequência cardíaca (186 bpm), cadência (109 rpm) e temperatura (33ºC). Todos esses valores é o que chamamos de valores instantâneos, pois mudam a cada instante, mas seu ciclo computador registra a cada segundo. Esse é, normalmente, o tempo mínimo que seu ciclo computador registra os dados (chamamos de resolução).

Figura 1 – Análise de treino do Strava (27/07/2020)

Para esse meu treino, minha velocidade média foi de 30.8 km/h, com uma potência média de 165 watts, frequência cardíaca média de 162 batimentos por minuto, cadência média de 86 rpm e temperatura média de 31ºC. O ciclo computador ou o app do Strava, somam todos os valores registrados e os dividem pela quantidade de registros. Até aqui é fácil entender a validade dos valores médios. Nós os usamos para comparar se estamos evoluindo ou regredindo nos treinos (mas nem sempre tão diretamente assim).

A variância é uma métrica muito mais interessante! É a distância do valor instantâneo para o valor médio e pode ser usado de formas muito inteligentes para determinar as intensidades de treino e a sua eficácia. São valores calculados para trás, pois eles precisam das médias do que foi feito até então. Nesse instante do exemplo, eu estava 19.2 km/h acima da média final, 59 watts abaixo da média final, 24 bpm acima da média final, 23 rpm acima da média final e o ar estava 2ºC mais quente do que a média final de temperatura da sessão. Não tão rápido, jovem gafanhoto…

Até aquele momento, minha média de velocidade e potência eram diferentes. A análise da variância utilizando-se apenas as médias finais não vão traduzir o momento por si só (Figura 2). Quando analisamos a média móvel, vemos que naquele momento eu estava 17,2 km/h acima da média, 68 watts abaixo da média e por aí vai. Ou seja, os valores tinham sido mais altos até aquele momento. Só em comparar a variância dessa sessão para entender em que situação eu me encontrava no instante selecionado em relação à média final e a média móvel: declive, após um esforço alto e pedalando rápido.

Figura 2 – Análise da média móvel.

As Zonas de Potência

A melhor forma de entender essa relação é analisar o gráfico de quadratura (Ver Figura 3). Eu postei minha sessão de 27/07/2020, não muito puxada, nem tão leve, para que pudéssemos utilizar como exemplo. No eixo vertical (Y), temos a força média exercida no pedal ao longo de um segundo. No eixo horizontal (X), temos a cadência. Embora não esteja assim representado pelo programa (o Golden Cheetah informa a velocidade tangencial do pedal em metros por segundo), pode ser traduzida assim. Fica mais fácil. O gráfico se chama análise de quadratura, justamente por conta das linhas (em preto) que o divide em quatro quadrantes. Eles são numerados de I à IV, em sentido anti-horário, iniciando o primeiro quadrante na parte superior direita e finalizando o quarto quadrante na parte inferior direita. Cada um tem seu significado:

Quadrante I: Muita força com alta cadência = Alta Potência (muitos watts)

Quadrante II: Muita força com baixa cadência = Alta Potência (muitos watts)

Quadrante III: Pouca força com baixa cadência = Baixa Potência (poucos watts)

Quadrante IV: Pouca força com alta cadência = Baixa Potência (poucos watts)

Figura 3 – Gráfico de Análise de Quadratura (QA). Eixo horizontal mostra a cadência ou a velocidade de rotação tangencial (em m/s), enquanto eixo vertical mostra a força efetiva média aplicada ao pedal (em N).

Embora eu tenha descrito alta potência e baixa potência quase em preto-e-branco, as coisas não acontecem tão simples assim. Para facilitar seu entendimento, eu criei um espectro de potência colorido, indo do fúcsia ao salmão, com as legendas Z1-Z7. Essas zonas, são as zonas de treinamento que usamos para descrever a intensidade (e também determinar o volume) das seções de treinamento. Elas caracterizam o esforço e também relativizam o tempo que alguém consegue suportá-lo nestas intensidades. O mais interessante é que não começamos a explicar pela Zona 1 (Z1). Começamos pela Zona 4 (Z4), que é justamente a zona a qual determina a sua potência média para um esforço máximo suportado por 60 minutos. É o famoso FTP (Functional Threshold Power). Muita gente fala dele por aí sem ter nem idéia do que realmente significa, mas ele é um cara legal. Não se apresse que vamos dedicar um post apenas para ele.

Por enquanto, basta dizer que o FTP é o esforço em que seu corpo produz lactato suficiente caracterizando um exercício totalmente extenuante em um período de uma hora. Há muita discussão no meio científico à respeito, da sua validade como métrica principal, dos protocolos para sua determinação exata, dos treinamentos baseados nele, etc, etc e etc. Não quero que este post fique chato, então vamos apenas deixar ele (o FTP) marcado para o futuro. Então, continuando, a Z4 representa uma intensidade de 91 à 105% do valor em watts que representa seu FTP. É à partir dela que as demais zonas são marcadas. Para maior clareza, vamos adotar um FTP fictício de 200 W.

A Z1 é o que chamamos de zona de recuperação. É como aquele pedalzinho social, que dá para contar todas as vantagens do mundo para seu chegado que está ao lado e quase não te faz transpirar (<55% do FTP, em watts). Na Zona 2 (Z2), as coisas começam a ficar interessantes. Ela representa 56-75% do seu FTP, em watts. É nessa zona de intensidade média que todos realizam seus longões de final de semana. Pode ficar horas pedalando nessa intensidade. A terceira zona (Z3) é chamada de tempo. É um esforço intermediário (76-90% do FTP, em watts) que causa certo desconforto, mas dá aquela sensação de treino produtivo. Nessa intensidade já não dá para conversar com ninguém por mais do que algumas frases.

Na Zona 5 (Z5), você está com intensidades acima de 106% do seu FTP e pode ir até 120%. Não consegue sustentar esse nível de potência por mais do que 8 minutos. Três minutos à 120% já é uma tortura! Se o nosso FTP fictício é de 200 W, Z5 à 120% significa sustentar 240 W. Nessa zona, treina-se ao máximo o sistema cárdio-respiratório. A eficiência desse sistema é medida através do VO2max. VO2max é uma condição de quanto treinado você está. Quanto mais alto esse valor, melhor é o condicionamento ou o potencial do atleta.

As Zonas 6 e 7 (Z6 e Z7), são zonas de ativação anaeróbia, ou seja, são intensidades musculares que utilizam outros tipos de fibras músculo-esqueléticas, que não dependem necessariamente de oxigênio para a sua ativação. Preste atenção: não estou dizendo que as fibras não utilizam oxigênio, mas são ativadas em déficit de oxigênio. É na verdade a capacidade de regenerar ATP sem requerê-lo das mitocôndrias (Confuso e com tempo, irmão? Clica aqui!). Como a intensidade é brutal, seu tempo de utilização é muito curto (no máximo 3 minutos para a Z6 e poucos segundos para a Z7).

 

Reflexões de Saída

Existem algumas coisas que apenas o treinamento com a ajuda de um PM vão ser passíveis de serem analisadas e estudadas. Treinar com potência é um conceito totalmente diferente de treinamento e também é bem distante de treinar por potência (em busca de potência). No dia 27/07/2020, este treino despretensioso me deixou frustrado. Eu tive a sensação de estar andando com os pneus murchos e fiquei um pouco dolorido em uma sessão de pouco mais de uma hora, mas ao analisar o QA (Figura 3), entendi melhor o que houve. Cerca de 20% de todo o esforço, foi feito em Z5Z7. Outros bons 15% ficou na região de Z4. Foi um esforço considerável, mas quando estava em recuperação, estava com cadência alta. O gráfico mostra o meu tipo de condicionamento (ou falta dele em QII) e o que é preciso treinar mais (ou melhor).

Essas informações, quando analisadas por treinadores experientes, mostram ao atleta o seu tipo de condicionamento neuro-muscular, sua capacidade de resistir à ataques consecutivos, o pace ideal para aquela montanha, o momento que o motor vai explodir. Nessa parte nós conversamos sobre os conceitos físicos teóricos e como eles podem ser aplicados ao treinamento. Na próxima parte, vamos abordar onde essa potência é medida e como é medida. Entender o equipamento é bom par desmistificarmos o medidor de potência.

Como sempre, obrigado por sua atenção e paciência de nos ler até aqui. Um grande abraço!


Sobre o autor

Pedro Anselmo Filho, Ph.D. é engenheiro mecânico e professor, com doutorado em combustão pela Universidade de Cambridge e mestrado em energia aplicada pela Universidade de Cranfield. Leciona para os cursos de Engenharia Mecânica e Automação e Controle da Universidade de Pernambuco (UPE) e nos cursos avançados da Escola Americana do Recife. Pedala sem rodinhas desde os 4 anos e ciclista entusiasta que gosta muito de estudar sobre potência. Seu email para contato é pedro.anselmo.filho@gmail.com e clique aqui para ter acesso ao seu Strava.

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