ESPN Lance 30:30 – O Veredito

Se você só aprecia narrativas de mocinhos ou de bandidos, não será isso que irá encontrar no mais recente documentário 30 for 30 da ESPN: Lance. Visceral, revelador e duro. Não existe melhores palavras para descrever os quase 205 minutos em que o documentário conta toda a vida de Armstrong até os dias de hoje. Um aviso: Essa análise traz alguns spoilers! 


ESPN 30 for 30 : Lance Armstrong

O nome de Lance Armstrong é indissociável da palavra doping. Goste disso ou não, esse é o foco de toda a narrativa contada no documentário 30 for 30 da ESPN – Lance. Isso tem um peso enorme dentro de nossa comunidade (ciclistas entusiastas, amadores e profissionais). E para o bem do esporte, que seja assim para sempre. O documentário foi lançado no final de mês de maio, nos Estados Unidos e completo, foi dividido em duas partes.

A primeira tem cerca de 1h35min e a segunda 1h48min. Conta com uma produção primorosa de M. Zenovich and P.G. Morgan, com direção da própria Marina Zenovich. A direção de fotografia é de Nick Higgins e a edição de Allan Duso. A música ficou à cargo de Scott Salinas. Em uma primeira análise, tudo levaria a crer que seria um documentário pensado e feito milimetricamente para uma provável redenção de Lance Armstrong. Não o é. A fotografia se sobressai logo nos primeiros minutos. Takes abertos, posicionamentos de câmera magistrais, acompanhamento de câmeras que te fazem achar que está dentro do carro conversando com o próprio Lance ou na sua cozinha, sentado na bancada, esperando uma salada com um pedaço de seu dedo indicador, regado à sangue com EPO.

 

Parte I – A Construção do Mito Lance Armstrong

A narrativa do primeiro episódio é bem didática, algumas vezes a fazendo parecer parcial. Talvez, porque tenha sido escrita para uma geração que não o viu ascender e tornar-se o heptacampeão sequenciado do Tour de France (Figura 1). Algumas lembranças de quem viveu aquele período ressurgem enquanto a primeira parte se desenrola.

Figura 1 – Lance Armstrong com a camisa amarela | Foto Divulgação

É impossível não lembrar que Lance tomou conta do ciclismo, tornou-se um homem extremamente poderoso e viu encarnar-se em uma mania mundial. Claro que tudo que sai da boca de Armstrong deve ser escutado e analisado de forma suspeita, afinal ele é um excelente mentiroso, que difamou muitos e destruiu a vida de outros tantos. Lance não tinha escrúpulos para exercer seu poder para o bem ou para o mal e – inteligentemente – ele reconhece tudo isso. Talvez seja essa a grande questão que assombra todo o documentário. É o verdadeiro Lance Armstrong que fala ou será aquele grande ator, de linhas bem ensaiadas e respostas agressivas e firmes para todos os questionamentos que não o agradam? É esse momento que mais chamou minha atenção. Ao vê-lo mais à vontade em seus posicionamentos, realmente comecei a achar que a maturidade finalmente o tenha atingido.

Eu não tive uma impressão tão definida sobre a primeira parte, como sugere a avaliação do Luiz Papillon (o famoso Papito) no nosso primeiro post. A abertura por sí só, já nos dá uma soco na boca do estômago. As perguntas feitas nas entrevistas são duríssimas. A apresentação do caso é bastante clara: Armstrong é uma fraude que foi descoberta e punida exemplarmente. Só que para entender essas impressões, do não favorecimento na primeira hora do filme, é necessário ler as entrelinhas.

 

Da Parte I à Parte II – Mr. Hyde mostra sua face

O roteiro segue mostrando longos depoimentos da mãe, do seu padrasto (que lhe deu o sobrenome Armstrong), dos seus ex-treinadores, de companheiros de escola e dos rivais/amigos dos times juvenis de triatlo e ciclismo. Mais que tudo (ou nada), enaltece a figura do jovem obstinado, dedicado ao esporte, extremamente focado em seu único objetivo de vencer. É neste contexto que devemos tentar entender quais os aspectos do caráter de Lance que são forjados para a sua vida adulta, dentro da sociedade Americana dos anos 80 e 90.

Contribui para termos uma falsa impressão, a falsa expectativa de retratar Lance Armstrong dentro da clássica narrativa do monomito, criado por Joseph Campbell. Campbell, em seu trabalho espetacular, fez uma longa pesquisa cultural e uma extensiva varredura das principais obras de toda a literatura mundial para definir a Jornada do Herói. Nessa jornada, o protagonista sai do seu status quo e embarca numa aventura que será composta de negações, provações e perigos, nos quais ele encontrará a superação e renascerá em uma outra posição, tanto internamente como externamente, sofrendo uma profunda reforma íntima. Ao retornar para seu mundo, nada será mais como antes. Seu universo estará para sempre modificado. Soa familiar?

 

Doping, Câncer e Uma Explosão de Sucesso: O mito

Jovem egresso de um lar desconexo, torna-se um ciclista dedicado, com uma carreira de sucesso, descobre um câncer agressivo com poucas chances de cura, várias metástases, volta triunfante para ganhar seu primeiro Tour de France. Não fosse o bastante, ganha outros seis Tours em sequência, sendo o nome mais popular do esporte mundial no início do século. Poderoso, tem acesso aos cartolas da UCI, aos presidentes dos Estados Unidos e é patrocinado pelas maiores marcas esportivas no mundo. Namorada famosa, multimilionário, fundador de uma das mais importantes e proeminentes fundações de amparo aos pacientes com câncer, transcende sua estatura de homem e torna-se um semi-deus. Livre das suas amarras, decide se aposentar e dedicar-se aos seus negócios na cidade que cresceu. É nesse ponto que a narrativa do herói se separa da narrativa do antagonista. Só que na história de Armstrong, ele é as duas coisas.

 

O Herói e o Vilão Ungidos

Figura 2 – Seven Deadly Sins: My Pursuit of Lance Armstrong.

Diferentemente do filme dirigido em 2015 por Stephen Frears: The Program, baseado no livro do Jornalista David Walsh (ver Figura 2), o filme da ESPN não tem uma narrativa totalmente linear. Em alguns momentos cria-se a figura do monomito, o que tira o espectador da sua posição de conforto e coloca o dedo na ferida do ciclismo. E esse dedo ainda cavuca dentro da carne machucada. Até de forma profética, Lance aparece com o dedo machucado em alguns takes. Esse dedo é o mesmo que escancara a relação promíscua entre os cartolas da UCI e os dopados do pelotão, quase que numa tentativa de justificar a decisão de se dopar com a necessidade de continuar competitivo. E olhando-se os números dos atletas, faz todo o sentido. No ciclismo de alto desempenho, 10% de vantagem na performance faz com que qualquer gregário tenha condições de competir pela GC. Dan Lloyd (apresentador do GCN), ao assistir a primeira parte do filme, comentou que admirava ainda mais os colegas que nunca haviam se dopado.

 

ESPN Acertou a Mão

Os produtores da ESPN foram felizes ao mostrar que existe um herói e existe um vilão, coexistindo dentro do mesmo corpo. O vilão traz detalhes escusos sobre a sua relação Michele Ferrari e toda a estratégia de sua mente doentia e a sua genialidade para a preparação de um atleta artificialmente catapultado para o sucesso, através da sua capacidade de absorver o sofrimento. Alguns momentos são chocantes, quando o Lance afirma que é relevante para o ciclismo. E ele está certo. Ou quando se emociona ao falar de Ullrich e Pantani. São nesses momentos que vemos o homem de verdade. Quando sua revolta vence seu sangue-frio ao falar do seu desprezo e do seu ódio aos hipócritas que tratam ele, Jan e Marco como um párias por terem se dopado por anos. A diferença fundamental entre Armstrong eos outros é que ele negou o dobro, destruindo tudo à sua frente com seu poder e sua aura de semi-deus.

Conheço muita gente que começou no esporte por nutrir uma admiração pela história de Armstrong e por sua apresentação como atleta imbatível, infalível e inoxidável. Ví alguns desses admiradores se tornarem ferrenhos haters. E esse sentimento está presente e transpira na cidade de Austin (cuja foto da chamada, eu tirei em minha visita à cidade no ano de 2015). Olhando os anos passados pela vantagem do retrovisor, concluo que Lance Armstrong não é odiado pelo que se dopou, mas pelas vidas que destruiu. E ele reconhece e consegue dormir com isso. Todos nós temos a chance de nos arrependermos e de nutrir remorsos pelos nossos maus comportamentos. De forma muito imparcial, a ESPN ouviu quase todos os envolvidos, inclusive Floyd Landis e David Walsh. Se há um “must see” para quem pedala, esse é um dos que você deve assistir.

I-M-P-E-R-D-Í-V-E-L.

 

Cheers!

Clique na cerveja para ver nosso tópico sobre doping.

 

 

 

 

 

 

 

 

 


Sobre o autor

Pedro Anselmo Filho, Ph.D. é engenheiro mecânico e professor, com doutorado em combustão pela Universidade de Cambridge e mestrado em energia aplicada pela Universidade de Cranfield. Leciona para os cursos de Engenharia Mecânica e Automação e Controle da Universidade de Pernambuco (UPE) e nos cursos avançados da Escola Americana do Recife. Pedala sem rodinhas desde os 4 anos e ciclista entusiasta que gosta muito de estudar sobre potência. Seu email para contato é pedro.anselmo.filho@gmail.com e clique aqui para ter acesso ao seu Strava.

5 thoughts on “ESPN Lance 30:30 – O Veredito

    1. Pedrão,
      Ainda não está disponível pela ESPN no Brasil, mas assim que soubermos quando irá ao ar, vamos informar aqui. Obrigado por sua participação! Se quiser ver um pouco do que a gente conversa sobre o assunto doping, clica lá na Guinness. E fique ligado que muita coisa boa ainda está por vir.

      P.

  1. Mais um aqui que queria poder ver a série no Brasil! 🙁

    ALO ESPN!?

    Vale uma enxurrada de posts nas redes deles por aqui. Muito triste que a nossa filial só se dedica ao futebol, mesmo sem direitos de transmissão pra quase nada!

    1. João, depende de criarem as legendas e/ou dublagem e isso leva um tempo. Acredito que logo irá ao ar e faremos a divulgação por aqui.

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